Em 1996 um grupo de amigos é formado após um dia de trabalho e resolvem que a partir daquele dia construiriam algumas cestas básicas para serem levadas a uma determinada comunidade do Rio de Janeiro. Essa atividade seguiu até o ano de 1999, quando esse grupo é demitido do trabalho e se dispersa. Em 2009 o grupo se reencontra e resolve dar continuidade ao trabalho, sendo que em outra comunidade do Rio de Janeiro.
Em 2016 um dos componentes do grupo, médium e militante da Umbanda do Pai Fabrício, recebe a orientação de que havia chegado a hora de começar um trabalho religioso e agregado ao mesmo um trabalho social na comunidade Mineiro Pau em Santa Cruz, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro, onde nascera.
Dessa forma surge, dia 09 de outubro de 2016, a Obra Social Filhos da Razão e Justiça, nome sugerido pela Entidade Espiritual que atende pelo nome de Kabiúna do Sertão, então Coordenador Espiritual da Obra Social. Nesse dia foi realizado uma grande ação social na casa de um dos voluntários com um grupo de colaboradores, pessoas afins, enfermeiros, médicos, advogados, professores, assistente social entre outros voluntários. Realizou-se uma grande ação social com café da manhã e almoço, ao final foram distribuídas 62 cestas básicas. Naquele domingo começou a se materializar o sonho de criar soluções inclusivas para crianças, adolescentes e jovens da comunidade Mineiro Pau, com finalidade de auxiliar na transformação de sua difícil realidade. Nesse mesmo dia foi feita inscrição para a então primeira oficina da OSFRJ, oficina de ballet/hip-hop que começaria na terça feira seguinte.
Na segunda feira consequente ao evento, o dono de um salão de festas na comunidade ofereceu para que funcionasse 3 dias (segunda, terça e quarta-feira). Esse fato encorajou o grupo a fazer uma proposta de aluguel, que foi aceita prontamente pelo valor de R$ 1500,00, e o que antes era um salão de festas transformou- se em sede provisória. Essa parceria durou de fevereiro de 2017 à janeiro de 2019, quando houve a informação de que o valor sofreria um reajuste.
Em fevereiro a Obra já estava em outro endereço, cujo aluguel mais em conta R$ 800,00, um prédio que oferecia mais possibilidades e com um terreno anexo, possibilitando pensar inclusive na construção de uma horta. Dois meses depois do aluguel, foi feita pelo proprietário uma proposta de compra do espaço com uma entrada (R$ 20.000,00) com pagamento de 72 parcelas de R$ 2.500,00 mensal. Fato este que encheu o grupo de surpresa e alegria, mas precisava-se conseguir o dinheiro. Movidos por uma união de voluntários, amigos, simpatizantes e muita gente de boa vontade, conseguiu-se levantar a entrada e hoje segue- se na mesma batida conseguindo com a ajuda de muitos pagar mês a mês as parcelas.
Importante salientar que o fato da Obra Social existir sob a orientação umbandista, não há e não haverá em tempo algum, qualquer exigência de participação nas práticas ou ritualísticas. O trabalho ofertado a comunidade se desenvolve em um espaço ecumênico, onde voluntários e acolhidos de diversas religiões convivem em harmonia e parceria, num espaço plural onde se prima pela riqueza da diversidade em todos os aspectos e matizes, sendo o respeito e a tolerância as maiores bandeiras.
BREVE HISTÓRIA DE SANTA CRUZ: DESAFIOS, LUTAS E RESISTENCIAS
Santa Cruz é um bairro localizado na Zona Oeste da cidade do Rio de Janeiro com uma população estimada em 217.333 pessoas (IBGE, Censo 2010). Além disso, se caracteriza também como um dos bairros mais populosos e um dos mais antigos da cidade maravilhosa, embora sofra com o descaso e o esquecimento dos governantes, além de ter sua atual realidade marcada pela violência social e ambiental. Apesar dessas questões, o “último” bairro da Zona Oeste não perdeu seu charme e seus valores, e ainda guarda uma população criativa e resiliente, que resiste aos obstáculos do tempo e segue mantendo viva a cultura e a história da região.
A história desse bairro tem início no período colonial do Brasil quando Santa Cruz e quase todo o território da Zona Oeste faziam parte da Real Fazenda de Santa Cruz, um importante território que abastecia a cidade do Rio de Janeiro com alimentos e estava estrategicamente localizado na Baía de Sepetiba (CORRÊA, 2016, p. 13). Através de estudos aprofundados na história da localidade é possível observar a significativa importância da fazenda para a economia colonial, visto que a Real Fazenda de Santa Cruz, por volta de meados do século XVIII, continha notável número de escravizados trabalhando nas atividades agropecuárias, além de possuir 22 currais com cerca de 8 mil cabeças de gado (CORRÊA, 2016, p 21). Posteriormente, com a chegada da família real portuguesa ao Brasil, a fazenda se tornou um local de veraneio para os nobres e foi elevada à condição de palácio (CORRÊA, 2016, p. 33).
Um ponto importante a ser ressaltado e analisado com atenção nessa história é a herança escravocrata da região, que, segundo o historiador Carlos Engemann, possuía uma pequena multidão de escravizados trabalhando nas instâncias da fazenda. Nessa perspectiva, o autor cita também que parte importante do desenvolvimento dessa população de pessoas cativas em Santa Cruz se deu através do crescimento endógeno e não através do tráfico (ENGEMANN, 2002, p. 89). Dessa maneira, é possível observar que ali foi estabelecida uma teia familiar entre os negros escravizados, que também proporcionou a fazenda não necessitar mais da compra de mão de obra e até mesmo fornecer escravizados para outras localidades (ENGEMANN, 2002, p. 90).
Nesse ínterim, é notável que o passado escravista da região está diretamente relacionado à realidade atual do bairro, que é formado majoritariamente por pessoas negras. Assim como em todo o Brasil, país formado estruturalmente a partir do racismo – entendendo que racismo estrutural significa que as próprias estruturas formadoras da sociedade permitem a discriminação sistemática de grupos racialmente identificados (ALMEIDA, 2019, p. 51) – Santa Cruz é um exemplo de comunidade negra que foge dos olhos do Estado e lida diariamente com os desafios da violência, da fome, do esquecimento e do apagamento imposto pela branquitude que ocupa as instâncias de poder do país.
Embora sejam encontrados muitos trabalhos acadêmicos sobre Santa Cruz no período colonial e imperial, é notável o esgotamento do interesse dos pesquisadores sobre o bairro nos períodos do pós abolição até os dias atuais. Apesar disso, o que se pode notar ao conversar com os moradores mais antigos da região é que a população que ali existe nunca esteve parada no tempo, e ao longo de todos esses anos foram criando e recriando formas de sobreviver e viver através do trabalho, da arte e da cultura, mesmo que não fossem valorizados externamente. A exemplo disso temos a Comunidade do Mineiro Pau, que recebe esse nome de uma dança afro-brasileira que marcou a localidade no século XX e foi difundida por um homem negro conhecido como Seu Valdemar Madalena, natural da cidade de Santo Antônio de Pádua. Ele, assim como muitos outros homens negros que saíram do Norte Fluminense e do Vale do Paraíba, importantes territórios no período da escravidão, veio buscar melhores oportunidades de vida na capital carioca e se instalou em Santa Cruz. Essa comunidade foi um importante centro cultural no século passado onde eram realizados grandes eventos como as danças de Mineiro Pau, competições de quadrilha, rodas de samba e jogos de futebol que atraíam imenso público de moradores das redondezas e movimentavam a localidade que não recebia investimentos culturais por parte do município e do estado.